blogando

“Não faz parte da minha Função”

há 456 semanas

- Bom dia Dr. Chegou a carrinha de Cabo Ruivo e traz as caixas com o tabaco do mês, disse Anabela, assomando à porta.

- Obrigado Anabela. Pergunte ao Melo se me pode vir ajudar, respondeu o “doutor”, enquanto contornava a sua secretária.

O jovem “doutor” era José. Tinha entrado na empresa há cerca de seis anos para a secção de cargas e descargas quando estava a meio do deu curso de direito. Conheceu por dentro, praticamente todas as áreas da Empresa, até que concluiu a licenciatura e foi nomeado para Direcção de Recursos Humanos (DRH), na qual tinha assumido várias responsabilidades, sendo naquela altura o Responsável pelos Recursos Humanos da Fábrica de Cabo Ruivo e da Sede, situada no centro de Lisboa,

A empresa era resultado do processo de nacionalizações de 1976 e fora constituída a partir de duas empresas privadas que concorriam aguerridamente entre si. Após dez anos de gestão pública, a empresa tinha-se modernizado, e tornara-se numa das mais eficazes e sofisticadas empresas públicas (EP) a operar no mercado Português. Mas, em simultâneo, tinha também adquirido os “defeitos tradicionais” das EPs: Gestão muito condicionada politicamente; número de empregados muito superior às empresas privadas; estruturas envelhecidas e com baixo nível de habilitações; salários baixos (embora com um bom nível de benefícios sociais); absentismo elevado e muita conflitualidade laboral.

Pouco a pouco, a Empresa tinha sedimentado uma cultura que poderia ser definida como tipicamente “Portuguesa”. Apesar da conflitualidade laboral induzida por organizações sindicais poderosas e influentes, o ambiente era calmo, agradável e havia um esforço por resolver todos os problemas de forma consensual. Os trabalhadores eram tratados de forma afetuosa e existia em todos os assuntos um grande respeito pelos sentimentos das pessoas envolvidas.

Normas e procedimentos eram quase inexistentes, havendo uma tradição de relação informal e de resolver os problemas de forma amigável. A única “lei” que todos conheciam e reconheciam era o ACT – Acordo Colectivo de Trabalho negociado alguns anos antes entre o Conselho de Gerência e os Sindicatos.

Existia um ambiente “tradicional e confortável”. Os objectivos, quando existiam, eram perfeitamente atingíveis. Os salários base eram razoáveis, embora estando espartilhados numa grelha existente há muitos anos e que criava condições de promoção quase automáticas. O grande investimento da Empresa ao longo dos anos tinha sido nas regalias sociais, que eram iguais para todos e claramente superiores ao praticado no mercado.

Um destes “benefícios” era a oferta de 20 maços de cigarros por mês a todos os colaboradores que não trabalhavam dentro da fábrica e que, por essa razão, não podiam beneficiar da possibilidade de fumar gratuitamente. Por essa razão, no início de cada mês a carrinha que trazia diariamente o correio interno da fábrica de Cabo Ruivo para Sede, trazia também duas caixas, pesando cada uma cerca de vinte quilos, que continham os pacotes de cigarros para oferta.

Todos os meses a cena se repetia. Rogério estacionava a sua Toyota Hiace castanha em frente à Sede. Saia da carrinha calmamente, abria a porta traseira e, ostensivamente, não tocava em nenhuma das pastas ou caixas que transportava, dizendo, para os colegas que o queriam ouvir:

- Eu sou motorista, não sou ajudante de motorista. Não faz parte da minha função descarregar a carrinha!

Joaquim era um contino simpático e amigo de ajudar. Descia, aproximava-se da Toyota, Dava umas bocas ao Rogério sobre o seu Sporting, depositava na carrinha as pastas com correio para a Fabrica de Cabo Ruivo e recolhia as que continham o correio de para a Sede. Mas negava-se a transportar as duas caixas de cigarros:

- Sou contino, não sou ajudante de motorista. A minha função é distribuir documentos e não caixas. Eu até fui “recolocado” nesta função por razões de saúde.

Era então que chegava o jovem Gestor de Recursos Humanos acompanhado dum dos “escriturários” da sua equipa. Cumprimentavam os colegas, recolhiam as duas caixas e transportavam-nas para a DRH.

José costumava dizer por graça: “Da função de Diretor, tudo faz parte!”

Sintra, 17 de Abril de 2008

José Bancaleiro

clique para ver
o artigo completo
Comentário de susana rebelo:
Excelente texto professor

2015-07-20 16:23:57
Comentário de Isabel coelho Lima:
Ainda hoje acontecem coisas deste género...a malta operacional sente se diminuída por fazer algumas coisas que não fazem parte do elevado estatuto profissional da sua função ...importâncias ...importantes digo eu ...lol

2015-07-20 20:29:16
Comentário de maria rodrigues:
Denoto que tive vontade de voltar a reler este artigo. Acontece-me várias vezes quando interiorizo um tema um acontecimento um livro que se guarda mas não se esquece mas sabemos que nos pertence. Nunca gostei de emprestar livros pois penso que a qualquer momento necessito de sentir que eles não me abandonaram

Anotei a data deste acontecimento. Volvidos estes anos e mastigando as palavras atrevo-me a dizer que pouca coisa mudou
Quando todos perceberem que uma organização funciona como a fisiologia O seu escopo e temas são tão diversos quanto a diversidade da vida que existe no planeta Tudo dentro dela organização está interligado. Quando todos perceberem repito: Deixaremos de ouvir Não Faz Parte da Minha Função NÓS somos um todo Temos que obrigatoriamente entender as partes.

2015-07-20 22:31:15
Comentário de um visitante anónimo:
José esse benefício já acabou. A empresa comprou a todos os trabalhadores fumadores não fumadores esse benefício .


2015-07-20 23:25:26
Comentário de José Carlos Santos:
Banca o meu amigo nunca me enganou era de facto um homem ás direitas.Parabens e ainda bem que era assim. Obrigado Banca

2015-07-21 16:43:11
Comentário de M Assunção:
Bom dia Bancaleiro deixo aqui o meu comentário porque houve um período da minha vida como funcionária da Tabaqueira em que muitas vezes fiz trabalhos que não tinham nada a ver com a minha função mas fi-los com gosto pois a maneira como era solicitada a minha colaboração ou de qualquer outro trabalhador pela directora era sempre com muita deferência e muitas vezes ela se associava nas tarefas a realizar. Ainda hoje passados tantos anos mantemos a amizade que se construiu nesse período Aprendi muito com ela e foram os melhores 10 anos da minha vida profissional.

2015-07-23 13:02:23
Comentário de M Assunção:
Bom dia Bancaleiro deixo aqui o meu comentário porque houve um período da minha vida como funcionária da Tabaqueira em que muitas vezes fiz trabalhos que não tinham nada a ver com a minha função mas fi-los com gosto pois a maneira como era solicitada a minha colaboração ou de qualquer outro trabalhador pela directora era sempre com muita deferência e muitas vezes ela se associava nas tarefas a realizar. Ainda hoje passados tantos anos mantemos a amizade que se construiu nesse período Aprendi muito com ela e foram os melhores 10 anos da minha vida profissional.

2015-07-23 13:02:35
Comentário de Augusta Santos:
De bons exemplos fazem-se os grandes Diretores.


2015-07-27 12:32:50
Comentário de António Caloira:
Olá Dr. Tudo bem?.
Eu sou do tempo em que se dava o que se tinha e não tinha. Na Tabaqueira durante os quase 20 anos ao seu serviço passei por várias fazes e serviços desde os armazéns de tabaco em rama operador de máquinas filtros para os cigarros com estágio na Bélgica e por vezes na brincadeira digo aos meus amigos com certa vaidade é certo mas no gozo lhes digo sabes quem foi o primeiro Português a fazer aquilo que estás a meter na boca? claro que não acreditam quando digo que fui eu e até por acaso tem quase 90% de verdade mais tarde fui para os D.R.U. onde exerci várias funções administrativas era o tapa buracos . Ainda se lembra das nossas Festanças com trabalhadores e reformados. Sinto saudades desse tempo. foram quase 20 anos ao serviço dessa Empresa . Um grande abraço extensivo a todos os seus familiares.

2015-07-31 17:29:10
Deixe o seu comentário:

A sua identificação:
Nome:
Email: