A perguntar é que a gente se entende
há +949 semanas
O dia começara há muito pouco. José mal se tinha acabado de sentar à secretária quando a porta do gabinete se abriu de rompante e entrou Helena esbaforida e visivelmente alterada.
- Ó Soutor, eu desgraço a minha vida mas antes disso dou uma sova na Fernanda. O senhor tem de resolver o problema senão eu não respondo por mim.
José já a conhecia. Era uma operária bonita e simpática da secção de empacotamento com quem costumava trocar algumas palavras na sua habitual volta diária por toda a fábrica. Nos últimos meses o tema das rápidas conversas com ela eram as "gracinhas" da Patricia, a filha que Helena tinha dado à luz poucos meses antes.
Quando José foi nomeado como responsável pela Direcção de Recursos Humanos daquela Unidade Industrial e tinha começado a fazer essas passagens diárias por todas as secções, os operários, com o seu humor mordaz e incisivo, puseram-lhe a alcunha do "Securitas". Passados alguns meses, a desconfiança desapareceu e as passagens diárias passaram a ser olhadas com agrado e tornaram-se num meio eficaz de aproximação e comunicação.
Percebendo que a colega se encontrava fora de si, o jovem Gestor aproximou-se dela e, pegando-lhe afectuosamente num braço, falou-lhe em tom baixo e pausado:
- Olá Helena, sente-se um pouquinho por favor - continuando após ela se sentar na ponta da cadeira e ele ter voltado lentamente para o seu lugar no outro lado da secretária - agora conte-me o que se passou.
- Já é a terceira vez que a Fernanda me provoca à frente das outras colegas - explodiu Helena de novo - das outras vezes consegui não lhe responder, mas hoje quase lhe batia. O Soutor. . .
- Mas quem essa Fernanda? interrompeu José.
- O Soutor sabe quem é! É aquela que trabalha ao fundo da minha secção na máquina do Joel, acrescentou Helena.
- Uma loura que às vezes anda com uma bata branca? Inquiriu o jovem gestor.
- Não Soutor, é aquela morena com os cabelos muito pretos e que usa dois carrapitos, informou a operária fabril, em tom mais calmo.
- Já sei - anuiu José - a Fernanda Rosa, uma que tem duas meninas.
- É essa mesmo! - confirmou Helena - Não sei se sabe mas cada uma das meninas é dum pai . . . . enfim uma desgraça.
- Então mas afinal o que é que se passou, perguntou José, percebendo que a colega começava a estar mais calma.
- Ó Soutor, ela já me anda a chatear há uns tempos e hoje voltou a meter-se comigo, disse Helena, mostrando-se de novo mais tensa.
- A chatear como?
- Ultimamente costuma fazer comentários para as outras sobre a minha roupa?
- Sobre a sua roupa - estranhou José - mas que tipo de comentários?
- Conversas de mulheres - respondeu a operária, mostrando algum embaraço - hoje foi sobre a minha roupa interior.
- E nas vezes anteriores?
- Há umas semanas disse-me que eu me vestia como uma velha.
- Mas porquê? Ela veste-se assim tão bem?
- Ela? Coitada, não tem onde cair morta. Vem sempre com a mesma roupa - comentou Helena, acrescentando - Aquilo é uma desgraça. Ela é um bocado destrambelhada.
- E isso já acontece há muito tempo?
- Já vem desde há mais de um ano.
- E tem sido frequente?
- De vez em quando. Já é para aí a terceira ou quarta vez que isto acontece.
- E quando é que ela a costuma chatear?
- É de manhã no vestiário - informou Helena, acrescentando com um sorriso malandro nos lábios - provavelmente, deve ter más noites!
- Então é porque a Fernanda faz comentários sobre a forma como se veste que você hoje entrou aqui muito enervada e a dizer que estava disposta a desgraçar a sua vida? disse José, quando percebeu que a tensão tinha passado e que Helena dava sinais de ser capaz de raciocinar por si.
- Tem razão Soutor! Então eu ia dar cabo da minha vida por causa duma pobre desgraçada fazer comentários sobre a minha roupa. Eu sou muito parva não sou? Concluiu Helena, acrescentando - Ó Soutor desculpe. Eu vou mas é regressar ao meu posto de trabalho.