À mesa ou na mesa
há 917 semanas
"Tudo que faço ou medito
fica sempre na metade.
Querendo, quero o infinito;
Fazendo, não é verdade."
Fernando Pessoa - Letras
As "sopas do Espírito Santo" estavam deliciosas. Marcelino e Paula
aproveitaram o convite do Sr. Alfredo para irem experimentar ao seu
"Bambino" aquele prato típico Açoriano, para voltar a encontrar-se. Há
meses que não se viam.
Marcelino Barreno era um profissional de Recursos Humanos, com
muitos anos de experiência. Tinha começado a sua carreira, há perto de
trinta anos, como Delegado de Informação Médica (DIM), na mesma Empresa
(embora com um nome diferente) onde ainda se encontrava. Ao fim de
poucos anos, concluiu a sua licenciatura em Sociologia e assumiu a
responsabilidade pela "Secção de Pessoal". Em trinta anos a Empresa
tinha crescido muito. Foi adquirida por uma multinacional Farmacêutica
Americana, em meados dos anos oitenta, fundiu-se com uma Empresa do
Norte da Europa nos primeiros anos da década de noventa e adquiriu
outras duas Empresas, durante essa mesma década.
Marcelino contribuiu activamente em todos esses processos que
levaram à criação da hoje denominada StuartReynolds. Gostava de estar
próximo das pessoas, sabia do seu ofício, conhecia bem a Empresa e o
negócio e tinha ganho grandes competências em processos de mudança
organizacional. Considerava-se e era considerado, como um bom
profissional de Recursos Humanos.
Paula Laginha tinha começado a trabalhar como estagiária na
equipa de Marcelino, logo a seguir a concluir a sua licenciatura em
Psicologia. Reconhecia, cada vez mais, que essa primeira experiência de
quatro anos tinha sido determinante no seu desenvolvimento
profissional. Apesar dos anos que passaram e de se terem tornado amigos
pessoais, ainda hoje o considerava como o seu "professor". Tinha
deixado a indústria farmacêutica há cerca de oito anos. Passou pela
gestão de Recursos Humanos de dois outros sectores e estava há três
anos como Directora de Recursos Humanos da Distrishops, empresa
multinacional, especializada na distribuição de livros, discos e filmes
em grandes espaços comerciais, que possuía cinco lojas em Portugal, com
um total de mais de mil e oitocentos empregados.
Desde o primeiro minuto do almoço que Paula se apercebeu que
algo não estava bem com o seu amigo. Na altura do "Espera maridos" como
sobremesa, Marcelino disse-lhe:
- Paula, estou a pensar muito seriamente em pedir a demissão da StuartReynolds.
- A sério? O que se passa de tão grave que te leve a tomar essa
decisão. Sei que não gostas muito do estilo do teu actual Director
Geral (DG), mas, se nós nos Recursos Humanos abandonássemos as empresas
só porque não nos damos bem com o DG, Portugal tornava-se no paraíso
dos caçadores de cabeças.
- Sabes bem que não é só isso! Desta vez, as coisas foram longe de mais.
Em seguida, Marcelino contou-lhe que, desde que Pablo Gimenez
tinha sido nomeado Director Geral da StuartReynolds ia fazer três anos,
tudo na Empresa tinha vindo a piorar gradualmente.
Pablo, nascido em Caracas há perto de cinquenta anos,
licenciado em Ciências Farmacêuticas, costumava dizer que "lhe tinham
nascido os dentes na indústria farmacêutica". Tinha entrado na antiga
Reynolds, há mais de trinta anos como empregado de armazém. Subira a
pulso na Empresa. Era, reconhecidamente, muito dedicado e tecnicamente
muito competente. Os seus trinta anos de experiência em funções e
mercados muito diversos, tinham desenvolvido a capacidade de ter uma
excelente visão global dos assuntos e, em simultâneo, conseguir ver
todos os detalhes. Raramente as suas críticas eram infundadas.
Tinha, no entanto, uma personalidade marcada por extremos
emocionais, que fazia com que as pessoas nunca soubessem o que poderiam
esperar dele. Nos "dias bons", tudo eram rosas e a equipa uma espécie
de "dream team". Nos "maus dias", procurava culpados para tudo o que,
na sua opinião, estava menos bem e descobria as razões para punir "o
culpado". Depois de umas quantas fases depressivas, misturadas com
outras tantas de euforia, as pessoas passaram a temê-lo, mais do que a
respeitá-lo.
O problema, como dizia Marcelino, é que "em tempos difíceis,
como os que está a viver a nossa indústria, quase não há "dias bons".
Embora mantendo uma capa de abertura, Pablo tinha, pouco a
pouco, centralizado nele todas as decisões, desde as mais estratégicas
até às operacionais mais simples. Como exemplo, Marcelino contou que se
tinha "fartado de suar" para conseguir "roubar" à concorrência o melhor
Product Manager (PM) de antidepressivos do mercado e ele tinha
abandonado a Empresa ao fim de dez meses, alegando que "não queria
estar numa Empresa, onde até as canetas para oferecer aos médicos eram
escolhidas pelo Director Geral". O mais grave, continuou Marcelino, é
que o discurso oficial era o de que as pessoas deveriam ter iniciativas
e assumir riscos. No entanto, quando alguém se atrevia a expor alguma
ideia ou a tomar iniciativa que não se enquadrasse na "construção" que
o Director Geral tinha na cabeça, não só era criticado publicamente,
como passava de "bestial a besta" de imediato. "E quem está na
berlinda, passa tempos muito difíceis até ele se esquecer ou arranjar
outra vítima".
A equipa de direcção desentendeu-se completamente. Todos os
directores sabiam que, mais tarde ou mais cedo, iria chegar o seu
momento de ser "besta" e que não teriam o apoio de ninguém. Por isso,
cada Departamento queria apenas estar descansado no seu canto, com o
mínimo de exposição e de interferências. Este clima de medo baixou
drasticamente o nível de cooperação entre departamentos. As decisões
passaram a ser tambem menos participadas e, consequentemente, menos
correctas e a sua implementação menos entusiástica, pela falta de
envolvimento.
Ultimamente, uma frase muito ouvida na Empresa é " A StuartReynolds era uma boa empresa, apesar do Director Geral".
E Marcelino prosseguiu: "Como é evidente os resultados deste
tipo de gestão já estão a aparecer". A saída de empregados (em especial
os melhores e mais empregáveis) aumentou significativamente. O
absentismo aumentou para níveis inimagináveis. Vários empregados estão
em casa com depressões. A imagem da empresa tem vindo a degradar-se
junto dos médicos. As quotas de mercado dos produtos mais importantes
têm caído a pique. "Lançámos dois produtos nos últimos três anos que
foram autênticos "flopes". "Enfim, uma desgraça! Parece que vêm aí os
genéricos. Sempre servirá de desculpa".
"E tu o que tens feito"? Perguntou Paula, acrescentando, "não me pareces homem para ficar de braços cruzados"
A resposta de Marcelino foi hesitante: "Tenho feito o melhor que
sou capaz. No entanto, acho que a Empresa está a caminhar para um
precipício e eu sinto-me completamente impotente."
Explicou, em seguida, que usou, durante meses, toda a sua
capacidade de influência junto do Pablo e também junto dos outros
directores. Passou horas a tentar convencer o Director Geral a melhorar
alguns aspectos da sua liderança. Tentou que ele aceitasse uma
experiência de "coaching", .... que foi recusada prontamente. Conseguiu
fazer uma acção de "team building" para a equipa de direcção que teve
resultados positivos... durante quinze dias.
"Só se fizer o que muita gente parece estar a fazer: "Colocar
uma velinha numa igreja para ver se ele muda para outro País ou
regressa à Venezuela".
"Embora o que se está a passar seja evidente e, em privado,
ninguém o conteste, em público, parece que não entendem o que eu digo.
No fim, ainda fico com a sensação de ser um mau profissional". Nos
últimos tempos os Recursos Humanos eram os bombos da festa nas reuniões
de Direcção.
Quando percebeu que a situação se estava a agravar, Marcelino
pediu a ajuda do seu chefe, o VP de Recursos Humanos da Europa, Paul
Morallee, que ficou muito alarmado e fez uma viagem a Portugal para
falar com ele. Marcelino confessou-lhe abertamente o que sentia.
Referiu-lhe o clima que se vivia na Empresa, contou-lhe algumas
conversas que tinha tido e deu-lhe alguns exemplos de saídas de
pessoas. Paul ouviu-o com muita atenção e preocupação e informou-o que
iria fazer o que estivesse ao seu alcance para ajudar. Nessa tarde,
falou com o Director Geral e com o Director Financeiro. Entretanto,
passaram-se quase seis meses desde essa visita e não tinha sido
encetada qualquer iniciativa.
A gota de água tinha sido na passada terça-feira. Desesperado
com mais uma saída de um dos melhores DIMs, duma das poucas zonas
(Braga) onde a StuartReynolds ainda conseguia manter as quotas de
mercado, Marcelino decidiu falar abertamente na reunião do Comité de
Direcção. Referiu o mau clima que se vivia na Empresa, a desmotivação
dos empregados, a falta de cooperação entre Departamentos e deu
exemplos de duas ou três saídas anteriores.
A resposta veio pelas bocas do Director Geral e do Director
Financeiro. Afirmaram que não percebiam porque estava ele a dramatizar
a saída de duas ou três pessoas. "Algumas delas, até nem eram grandes
profissionais e nunca deviam ter sido recrutadas". O clima já tinha
estado muito pior. Poderia até estar mal nalguns departamentos, mas
estava bons noutros. "Tanto quanto sei, no meu departamento
(Financeiro) não existem queixas". Cada Departamento tinha sua função
específica e desempenhava-a bem. "Não conheço nenhum caso em que algum
departamento tivesse negado a outro alguma cooperação quando
solicitada". Seguiu-se uma discussão muito acesa a três, onde tudo
aquilo que ele referia, era colocado em dúvida, por ser a "sua
percepção" ou era desvalorizado. Os outros participantes na reunião
mantiveram um silêncio incomodado.
No fim, Pablo acusou-o de estar a fazer uma tempestade num copo de água.
"Já sei quem vai ser o próximo a passar a "besta!", disse Marcelino com ar preocupado.
Paula não sabia o que dizer. Se aquilo que tinha ouvido sobre o
Director Geral da StuartReynolds era verdade, o Marcelino iria passar
um mau bocado. Decidiu tentar animá-lo.
- "Lembras-te do Alberto Mendes, que eu fui substituir na
Distrishops? Na altura da minha admissão, procurei-o e tive uma longa
conversa com ele. Ele contou-me que a sua saída da Distrishops se deveu
a uma situação similar à que tu estás a viver na Stuart. Na verdade,
Alberto tinha explicado detalhadamente a Paula que, quando trabalhava
na Distrishops, "sentia que o clima que se vivia na Empresa não era bom
e piorava todos os dias, o que se reflectia negativamente em muitos
aspectos, nomeadamente, na satisfação dos clientes". Tinha feito várias
tentativas para sensibilizar o "Management Team" da necessidade de
inverter o caminho, mas "parecia que ninguém o entendia ou não queria
entender". Farto de pregar no deserto, procurou outra oportunidade no
mercado e foi-se embora.
Paula considerava que aquela conversa tinha sido
importantíssima. "Ele é muito bom profissional e tudo aquilo que ele me
disse, eu vim a confirmar. Fez-me poupar muito tempo de aprendizagem,
evitou que eu cometesse alguns erros e permitiu-me amadurecer algumas
soluções".
Poucos meses depois da sua admissão, quando ainda estava em
"estado de graça", Paula convenceu o "Management Team" a deixá-la
fazer, com ajuda de um consultor, um inquérito de atitude em toda a
Empresa. Os resultados desse inquérito mostravam, globalmente, valores
altos nos aspectos relacionados com a função desempenhada (4.0) e com o
orgulho de pertencer à Empresa (4.2) e valores baixos em aspectos
relacionados com a comunicação (2.4) a liderança (2.6) e cooperação
entre sectores (2.9).
No entanto, havia um grande desfasamento entre as cinco
lojas. Os resultados eram muito elevados na loja de Espinho e muito
baixos na loja de Cascais. Quem os analisasse em separado, poderia,
facilmente, pensar que estas duas lojas pertenciam a Empresas
diferentes.
Numa reunião de direcção posterior, Paula apresentou os
resultados do inquérito. Inicialmente, apresentou apenas os resultados
globais. Os comentários dos directores foram que "Os resultados
confirmavam muito do que pensavam. Todos sabemos que temos de melhorar
a comunicação interna". Consideravam alguns índices como bastante
interessantes, mas, "não havendo nada para comparar, poucas conclusões
poderiam ser tiradas". Tinham, de facto, razão!
De seguida, apresentou um quadro comparativo dos índices por
loja. Foi evidente algum incómodo. Esboçaram-se algumas dúvidas sobre a
fiabilidade do inquérito. "As pessoas muitas vezes não dizem a
verdade". Fizeram-se algumas tentativas para justificar os resultados
menos bons de algumas lojas. "Como todos sabem, Cascais sempre foi uma
loja muito difícil". Mas, até aqui, o impacto dos resultados do
inquérito era mínimo.
As coisas mudaram de tom quando Paula apresentou um quadro em
que relacionava os índices de satisfação dos empregados de cada loja,
com a taxa de absentismo no semestre, o "turnover" voluntário de
empregados, a percentagem de quebras e, por último, com os resultados
do inquérito de satisfação de clientes do semestre anterior e a
lucratividade por loja do último ano.
Saltava à vista que havia uma correlação forte entre os
indicadores. Cascais apresentava os piores índices de satisfação dos
empregados, os piores índices de satisfação de clientes e era a loja
menos lucrativa. Era também a que tinha uma taxa de absentismo mais
elevada e maiores quebras. A loja de Espinho, em contrapartida, era a
que tinha melhores resultados em todos os indicadores, sendo, por larga
margem, também a loja mais lucrativa. Quase não houve discussão e a
preocupação transparecia na cara de todos os participantes na reunião.
No fim, todos lhe deram os parabéns. Mas, mais importante do
que isso, a Direcção aceitou as suas propostas de testar medidas ao
nível da liderança e do trabalho em equipa em duas lojas diferentes e
também a criação dum novo plano de incentivos. Os resultados obtidos
nestas duas experiências seriam medidos e serviriam para tomar a
decisão de avançar ou não para toda a Empresa.
"A partir daquele dia, a Direcção de Recursos Humanos passou a sentar-se à mesa de reuniões em vez de estar na mesa ".