vivências

Filho de peixe não sabe nadar

há +963 semanas


"Para ser grande, sê inteiro. Nada
teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa: Põe quanto és
no mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
brilha, porque alta vive.
Fernando Pessoa


Elisa Gomes entrou em casa, arrumou as chaves, tirou o casaco e o lenço e disse à filha, que a olhava insistentemente: " Já está! Custou menos do que estava a pensar. Entreguei hoje a carta de demissão". Sentou-se, recostou-se no sofá e acrescentou com voz embargada: "Não é fácil abandonar, ao fim de trinta anos, uma empresa a que demos tudo".

A primeira vez que entrou na Dispress, pareceu-lhe que tinha entrado numa casa de doidos. Havia uma enorme confusão. Gente a correr por todos os lados. Era um pequeno armazém, com um escritório a um canto onde não se encontrava ninguém. Soube, depois, que tinham acabado de chegar as revistas Americanas e todos se tinham precipitado para a sua preparação, de modo a ainda serem incluídas nas voltas da noite. Esperou alguns minutos e alguém se dirigiu a ela. Percebeu, mais tarde, que era o Sr. Artur Vicente, o dono da Empresa.

Depois duma curta entrevista, o Sr. Artur, informou-a das condições contratuais e disse-lhe para se apresentar no dia seguinte. Iria começar pelo sector da recepção e, posteriormente, rodaria de três em três meses pelas várias secções. No fim, se tudo corresse bem, acordariam qual seria a função que lhe seria atribuída.

Tudo se passou conforme combinado, com uma única diferença: O crescimento da Empresa foi tal, que só ao fim de vinte anos de casa parou de rodar de função.

A Dispress tinha sido criada três anos antes, finais da década de sessenta, pelo Sr. Artur Vicente, regressado a Portugal pouco tempo antes, após um período de quinze anos em França. Neste País, tinha, como todos os Portugueses emigrados, feito de tudo nos primeiros anos. Ao fim de cinco anos entrou numa Empresa de distribuição de jornais e revistas na região de Paris. Nela passou por varias funções, foi "subindo" e ganhando conhecimento do negócio. Passados dez anos, "farto de aturar um negreiro", despediu-se e regressou com a mulher e os três filhos pequenos a Lisboa, sua terra Natal.

Não sabendo fazer mais nada e apercebendo-se do atraso do nosso País no negócio de distribuição de publicações, decidiu contactar alguns editores, que tinha conhecido através da Empresa Francesa e propôs-lhe prestar-lhes o mesmo serviço em Portugal.

Começou sozinho, com a sua garagem na Amadora como armazém e uma velha Ford Transit para fazer as entregas. O negócio foi correndo e crescendo e ao fim de dois anos a Dispress já tinha mudado para um pequeno armazém perto do Aeroporto de Lisboa e contava com 22 empregados nos seus quadros.

A Empresa especializou-se na distribuição de revistas, negócio mais simples e com muito melhores margens que o dos Jornais. Inicialmente, a Dispress apostou em revistas estrangeiras, mas, pouco a pouco, começaram a entregar também algumas nacionais. A concorrência vinha essencialmente duma grande empresa familiar Portuguesa, com uma longa e forte tradição no mundo da Imprensa e que distribuía praticamente todos os títulos importantes.

Um dos primeiros projectos em que Elisa participou activamente foi o da criação de filiais em Angola e Moçambique. A guerra colonial tinha gerado um significativo crescimento económico daquelas duas ex-colónias Portuguesas, que se tinham tornado em mercados interessantes e muito prometedores. Era um salto e um investimento muito importantes para uma pequena Empresa. Os dois projectos foram liderados em conjunto pelo Sr. Artur e dois colegas com mais experiência que, posteriormente, ficaram a chefiar as delegações. Todos os empregados eram frequentemente informados das dificuldades e êxitos do processo e viviam-no intensamente.

Infelizmente, o período conturbado que se seguiu à independência de ambos os Países tornou evidente que os negócios se iriam tornar inviáveis, pelo menos no curto e médio prazo e foi rapidamente tomada a decisão de os descontinuar.

Mas, nem tudo foi negativo neste projecto. A experiência adquirida na criação das filiais viria a ser útil mais tarde na criação de delegações em Portugal. E, principalmente, durante cinco anos a Dispress foi a única distribuidora de publicações em Angola e Moçambique, pelo que todos os grandes jornais e revistas nacionais e internacionais eram aí distribuídos pela Empresa, o que lhe permitiu estabelecer e estreitar as relações com esses editores.

A revolução de Abril encontrou a Dispress já como a segunda empresa do mercado, mas ainda muito longe da primeira. Tinha uma equipa sólida e competente, bom ambiente, processos de trabalho bem organizados, níveis elevados de satisfação dos clientes e muita agressividade comercial. O processo de adaptação e convulsão social que se seguiu ao movimento militar de Abril de 1974 originou uma fase de elevada conflitualidade laboral em muitas empresas. Contrariamente à Dispress, onde não houve qualquer conflito, a sua grande concorrente teve inúmeros problemas laborais. As constantes greves, plenários e outras "formas de luta" criaram uma situação insustentável para os editores, que não viam as suas publicações nas bancas. Na sua quase totalidade, optaram rapidamente pela solução que já conheciam de Angola e Moçambique. Sabiam que estava disponível e que lhes prestaria um serviço de qualidade.

Foi um período de loucura. Entre 1975 e 1980 a Dispress tornou-se na grande distribuidora de publicações em Portugal. Passou de cerca de sessenta empregados para mais de duzentos; o volume de vendas mais do que sextuplicou; entrou na distribuição de jornais; abriu delegações no Norte e Sul e adquiriu instalações maiores e mais funcionais. "Uma época inesquecível".

Elisa estava convencida que a chave do sucesso da Dispress estava na equipa que o Sr. Artur criou à sua volta. Era, de facto, uma equipa extraordinária. Jovens, apaixonados pelo que faziam, muito diferentes entre si, incansáveis, sempre com novos projectos em mente. Enfim, "uma equipa de sonho".

Mais do que dar ordens, o Sr. Artur mostrava-lhes onde podiam chegar e fazia com que todos se sentissem parte dum projecto comum. Definia, em conjunto, os objectivos a atingir, negociava os meios e confiava a responsabilidade a alguém. Isto fazia com que todos, mesmo sem darem por isso, dessem tudo o que de melhor tinham para dar. Quase sem se fazer sentir, embora circulasse permanentemente pela Empresa, ele estava sempre presente quando era preciso. Para ajudar numa dificuldade pessoal, para rectificar um erro, para reconhecer um bom trabalho.

Todos conheciam (ele mesmo brincava com elas) as suas manias e limitações, mas sabiam que podiam confiar nele. "Estavam no mesmo barco. O que era bom, era partilhado por todos. O que era mau também" . Ambição e persistência nos objectivos, exigência no tratamento com clientes e rigor em termos de qualidade, eram os seus princípios inquestionáveis. Mas também o tinha visto defender a flexibilidade em questões de pormenor.

Que saudades!

Os anos oitenta foram de consolidação da liderança na distribuição de publicações e da diversificação para outras áreas de negócio. Como líder na distribuição de publicações, a Dispress continuou a marcar a inovação no negócio. Exemplos disso foram a implementação da distribuição nocturna e a informatização de todo o processo de distribuição, desde a recepção até ao tratamento das sobras. Ambos os processos se tornaram vantagens competitivas da Empresa e tiveram que ser "copiados" pela concorrência.

Por outro lado, aproveitando a rede de clientes onde a Dispress entregava os produtos, o Sr. Artur criou uma unidade de negócio para distribuir artigos de papelaria e outra para distribuir livros. Em ambos os casos, o Sr. Artur rodeou-se de pessoas que conheciam os meandros destes dois sectores. Antes de os lançar nos novos negócios, fê-los passar pela Dispress para poderem aproveitar as sinergias entre os negócios e também para absorverem a cultura existente. Rapidamente, estas duas unidades se impuseram nos respectivos mercados e se tornaram empresas autónomas.

Nos primeiros anos da década de noventa, o Sr. Artur dava sinais evidentes de algum cansaço e surgiram problemas de saúde, pelo que se iniciou um processo de passagem do testemunho ao seu filho Jaime e à filha Helena. O filho mais velho, Alberto, doutorado em bioquímica, trabalhava como investigador em Seattle, nos Estados Unidos da América e não tinha interesse em regressar. A Helena, com uma licenciatura na área das letras e experiência como professora , assumiu a direcção da empresa de distribuição de livros. Jaime, o filho mais novo, com formação em gestão, já trabalhava na empresa há alguns anos, tendo passado pelas várias secções. Logicamente, tornou-se no Gerente da Empresa.

Jaime sempre fora um jovem inseguro e a sua relação com o Pai nunca tinha sido fácil. Parecia que necessitava de marcar a diferença em relação ao Pai em tudo o que fazia. No entanto, na presença dele anulava-se por completo. Todos sabiam que tinha um bom conhecimento do negócio e uma enorme dedicação à Dispress. Gostava particularmente de trabalhos de gabinete e de ir ao detalhe de tudo. Tinha ficado celebre um folha de calculo em excel que ele tinha construído, através da qual, com base nos registos dos últimos quinze anos, se podiam planear as vendas por ponto de venda nos trimestres seguintes. Ainda hoje, esse sistema de cálculo era usado na Empresa.

Entretanto, o mercado da distribuição de publicações estava a mudar a uma velocidade vertiginosa. As novas televisões privadas, criadas nos primeiros anos da década de noventa, vieram trazer uma nova dinâmica ao mercado dos jornais e revistas. Á sua volta foram-se organizando e crescendo grupos poderosos que incluíam, para alem do negócio tradicional de televisão, rádios, editoras de jornais e revistas, gráficas, distribuidoras de publicações e, mais tarde, TV por cabo e empresas de Internet.

Nos primeiros dois anos, embora se sentisse a falta da "presença" e da dinâmica do Sr. Artur, não houve grandes modificações, a não ser o esvair contínuo de títulos importantes para as distribuidoras dos grandes grupos de media. A morte do Sr. Artur, em 1997, e a saída de mais dois importantes editores para a concorrência, no início de 1998, fizeram com que a Empresa se modificasse completamente.

O Jaime fechou-se, mais ainda, no gabinete, evitando toda e qualquer forma de reunião ou evento colectivo, incluindo aqueles onde se encontravam os clientes mais importantes. Limitou os seus contactos aos amigos pessoais, a maioria dos quais nada conheciam do negócio. Deixou de haver comunicação (e, muito menos, discussão) sobre o que de relevante se passava na Empresa. Eram dadas instruções detalhadas, de forma desgarrada, muitas vezes, por interpostas pessoas e sem qualquer apoio ou acompanhamento. As orientações variavam quase semanalmente e eram, frequentemente, conflituantes entre si.

Pouco a pouco, Jaime foi centralizando em si todas as decisões e tornou-se ainda mais "desconfiado" em relação ás pessoas, em particular, em relação àquelas que tinham trabalhado com o Pai. Refugiava-se em pequenos problemas administrativos e adiava todas as decisões sobre problemas de fundo. "Era capaz de enviar notas aos directores sobre falta de papel higiénico nas casas de banho, mas nunca participava em reuniões sobre novos contratos com clientes ou alterações na estrutura informática".

Começou a procurar culpados e a punir pessoas por tudo o que de mal acontecia. Criou-se um ambiente de medo, que anulou completamente a (já pouca) iniciativa individual. Este mau estar, não só aumentou o "turnover" de empregados, como se transmitiu aos clientes, prejudicando a imagem da Dispress, que tinha levado décadas a construir.

Muitos dos empregados que tinham erguido a Empresa com o Sr. Artur andavam pela casa dos cinquenta anos, pelo que tinham dificuldades em encontrar outras oportunidades profissionais. Mas, os mais novos e com mais valor, foram abandonando a Dispress. Os que ficavam, iam-se apoiando uns nos outros e aguentando o negócio de todas as formas que conseguiam. Muitos editores, especialmente, os mais antigos e não ligados a grupos de media, mantinham-se fiéis à Empresa, devido ás relações pessoais que tinham com essas pessoas.

Apesar de todo o esforço feito por muitos empregados, o negócio continuava a cair todos os anos. Não se via nenhum plano ou ideia sobre a forma de alterar este cenário. Uma solução possível, (que tinha sido recusada dois anos antes), era a Dispress juntar-se a um grupo de media. Isso, contudo, significaria perder o poder absoluto, o que não era aceitável para o Jaime.

Para ultrapassar as dificuldades financeiras que começaram, entretanto, a surgir, foram "impostas" algumas decisões, como a antecipação do pagamento pelas lojas e o atraso no prazo de pagamento aos editores, o que gerou enormes protestos dos clientes e agravou ainda mais o problema. "Enfim, erro, atrás de erro".

No ultimo ano e depois da visita de uma empresa de consultoria de um amigo seu, Jaime passou a defender que a culpa da situação em que a Empresa se encontrava era da equipa de direcção, (constituída, na maioria, por pessoas que tinham trabalhado com o Sr. Artur). Acusou-os de "serem um entrave à mudança" e afastou-os dos lugares em que pudessem influenciar o negócio.

A decisão parece não ter tido qualquer efeito positivo. Não foram implementadas, ou mesmo anunciadas, nenhumas medidas de fundo e as poucas decisões tomadas ainda agravaram mais a situação da Empresa. "A Dispress continua a esvair-se e já ninguém acredita que dure muito tempo".

"Filha, Hoje não aguentei mais. Que pena tenho que filho de peixe não saiba nadar".

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