Filho de peixe não sabe nadar
há 992 semanas
"Para ser grande, sê inteiro. Nada
teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa: Põe quanto és
no mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
brilha, porque alta vive.
Fernando Pessoa
Elisa Gomes entrou em casa, arrumou as chaves, tirou o casaco e o lenço
e disse à filha, que a olhava insistentemente: " Já está! Custou menos
do que estava a pensar. Entreguei hoje a carta de demissão". Sentou-se,
recostou-se no sofá e acrescentou com voz embargada: "Não é fácil
abandonar, ao fim de trinta anos, uma empresa a que demos tudo".
A primeira vez que entrou na Dispress, pareceu-lhe que tinha
entrado numa casa de doidos. Havia uma enorme confusão. Gente a correr
por todos os lados. Era um pequeno armazém, com um escritório a um
canto onde não se encontrava ninguém. Soube, depois, que tinham acabado
de chegar as revistas Americanas e todos se tinham precipitado para a
sua preparação, de modo a ainda serem incluídas nas voltas da noite.
Esperou alguns minutos e alguém se dirigiu a ela. Percebeu, mais tarde,
que era o Sr. Artur Vicente, o dono da Empresa.
Depois duma curta entrevista, o Sr. Artur, informou-a das
condições contratuais e disse-lhe para se apresentar no dia seguinte.
Iria começar pelo sector da recepção e, posteriormente, rodaria de três
em três meses pelas várias secções. No fim, se tudo corresse bem,
acordariam qual seria a função que lhe seria atribuída.
Tudo se passou conforme combinado, com uma única diferença: O
crescimento da Empresa foi tal, que só ao fim de vinte anos de casa
parou de rodar de função.
A Dispress tinha sido criada três anos antes, finais da década
de sessenta, pelo Sr. Artur Vicente, regressado a Portugal pouco tempo
antes, após um período de quinze anos em França. Neste País, tinha,
como todos os Portugueses emigrados, feito de tudo nos primeiros anos.
Ao fim de cinco anos entrou numa Empresa de distribuição de jornais e
revistas na região de Paris. Nela passou por varias funções, foi
"subindo" e ganhando conhecimento do negócio. Passados dez anos, "farto
de aturar um negreiro", despediu-se e regressou com a mulher e os três
filhos pequenos a Lisboa, sua terra Natal.
Não sabendo fazer mais nada e apercebendo-se do atraso do nosso
País no negócio de distribuição de publicações, decidiu contactar
alguns editores, que tinha conhecido através da Empresa Francesa e
propôs-lhe prestar-lhes o mesmo serviço em Portugal.
Começou sozinho, com a sua garagem na Amadora como armazém e
uma velha Ford Transit para fazer as entregas. O negócio foi correndo e
crescendo e ao fim de dois anos a Dispress já tinha mudado para um
pequeno armazém perto do Aeroporto de Lisboa e contava com 22
empregados nos seus quadros.
A Empresa especializou-se na distribuição de revistas, negócio
mais simples e com muito melhores margens que o dos Jornais.
Inicialmente, a Dispress apostou em revistas estrangeiras, mas, pouco a
pouco, começaram a entregar também algumas nacionais. A concorrência
vinha essencialmente duma grande empresa familiar Portuguesa, com uma
longa e forte tradição no mundo da Imprensa e que distribuía
praticamente todos os títulos importantes.
Um dos primeiros projectos em que Elisa participou activamente
foi o da criação de filiais em Angola e Moçambique. A guerra colonial
tinha gerado um significativo crescimento económico daquelas duas
ex-colónias Portuguesas, que se tinham tornado em mercados
interessantes e muito prometedores. Era um salto e um investimento
muito importantes para uma pequena Empresa. Os dois projectos foram
liderados em conjunto pelo Sr. Artur e dois colegas com mais
experiência que, posteriormente, ficaram a chefiar as delegações. Todos
os empregados eram frequentemente informados das dificuldades e êxitos
do processo e viviam-no intensamente.
Infelizmente, o período conturbado que se seguiu à
independência de ambos os Países tornou evidente que os negócios se
iriam tornar inviáveis, pelo menos no curto e médio prazo e foi
rapidamente tomada a decisão de os descontinuar.
Mas, nem tudo foi negativo neste projecto. A experiência
adquirida na criação das filiais viria a ser útil mais tarde na criação
de delegações em Portugal. E, principalmente, durante cinco anos a
Dispress foi a única distribuidora de publicações em Angola e
Moçambique, pelo que todos os grandes jornais e revistas nacionais e
internacionais eram aí distribuídos pela Empresa, o que lhe permitiu
estabelecer e estreitar as relações com esses editores.
A revolução de Abril encontrou a Dispress já como a segunda
empresa do mercado, mas ainda muito longe da primeira. Tinha uma equipa
sólida e competente, bom ambiente, processos de trabalho bem
organizados, níveis elevados de satisfação dos clientes e muita
agressividade comercial. O processo de adaptação e convulsão social que
se seguiu ao movimento militar de Abril de 1974 originou uma fase de
elevada conflitualidade laboral em muitas empresas. Contrariamente à
Dispress, onde não houve qualquer conflito, a sua grande concorrente
teve inúmeros problemas laborais. As constantes greves, plenários e
outras "formas de luta" criaram uma situação insustentável para os
editores, que não viam as suas publicações nas bancas. Na sua quase
totalidade, optaram rapidamente pela solução que já conheciam de Angola
e Moçambique. Sabiam que estava disponível e que lhes prestaria um
serviço de qualidade.
Foi um período de loucura. Entre 1975 e 1980 a Dispress
tornou-se na grande distribuidora de publicações em Portugal. Passou de
cerca de sessenta empregados para mais de duzentos; o volume de vendas
mais do que sextuplicou; entrou na distribuição de jornais; abriu
delegações no Norte e Sul e adquiriu instalações maiores e mais
funcionais. "Uma época inesquecível".
Elisa estava convencida que a chave do sucesso da Dispress
estava na equipa que o Sr. Artur criou à sua volta. Era, de facto, uma
equipa extraordinária. Jovens, apaixonados pelo que faziam, muito
diferentes entre si, incansáveis, sempre com novos projectos em mente.
Enfim, "uma equipa de sonho".
Mais do que dar ordens, o Sr. Artur mostrava-lhes onde podiam
chegar e fazia com que todos se sentissem parte dum projecto comum.
Definia, em conjunto, os objectivos a atingir, negociava os meios e
confiava a responsabilidade a alguém. Isto fazia com que todos, mesmo
sem darem por isso, dessem tudo o que de melhor tinham para dar. Quase
sem se fazer sentir, embora circulasse permanentemente pela Empresa,
ele estava sempre presente quando era preciso. Para ajudar numa
dificuldade pessoal, para rectificar um erro, para reconhecer um bom
trabalho.
Todos conheciam (ele mesmo brincava com elas) as suas manias e
limitações, mas sabiam que podiam confiar nele. "Estavam no mesmo
barco. O que era bom, era partilhado por todos. O que era mau também" .
Ambição e persistência nos objectivos, exigência no tratamento com
clientes e rigor em termos de qualidade, eram os seus princípios
inquestionáveis. Mas também o tinha visto defender a flexibilidade em
questões de pormenor.
Que saudades!
Os anos oitenta foram de consolidação da liderança na
distribuição de publicações e da diversificação para outras áreas de
negócio. Como líder na distribuição de publicações, a Dispress
continuou a marcar a inovação no negócio. Exemplos disso foram a
implementação da distribuição nocturna e a informatização de todo o
processo de distribuição, desde a recepção até ao tratamento das
sobras. Ambos os processos se tornaram vantagens competitivas da
Empresa e tiveram que ser "copiados" pela concorrência.
Por outro lado, aproveitando a rede de clientes onde a Dispress
entregava os produtos, o Sr. Artur criou uma unidade de negócio para
distribuir artigos de papelaria e outra para distribuir livros. Em
ambos os casos, o Sr. Artur rodeou-se de pessoas que conheciam os
meandros destes dois sectores. Antes de os lançar nos novos negócios,
fê-los passar pela Dispress para poderem aproveitar as sinergias entre
os negócios e também para absorverem a cultura existente. Rapidamente,
estas duas unidades se impuseram nos respectivos mercados e se tornaram
empresas autónomas.
Nos primeiros anos da década de noventa, o Sr. Artur dava
sinais evidentes de algum cansaço e surgiram problemas de saúde, pelo
que se iniciou um processo de passagem do testemunho ao seu filho Jaime
e à filha Helena. O filho mais velho, Alberto, doutorado em bioquímica,
trabalhava como investigador em Seattle, nos Estados Unidos da América
e não tinha interesse em regressar. A Helena, com uma licenciatura na
área das letras e experiência como professora , assumiu a direcção da
empresa de distribuição de livros. Jaime, o filho mais novo, com
formação em gestão, já trabalhava na empresa há alguns anos, tendo
passado pelas várias secções. Logicamente, tornou-se no Gerente da
Empresa.
Jaime sempre fora um jovem inseguro e a sua relação com o Pai
nunca tinha sido fácil. Parecia que necessitava de marcar a diferença
em relação ao Pai em tudo o que fazia. No entanto, na presença dele
anulava-se por completo. Todos sabiam que tinha um bom conhecimento do
negócio e uma enorme dedicação à Dispress. Gostava particularmente de
trabalhos de gabinete e de ir ao detalhe de tudo. Tinha ficado celebre
um folha de calculo em excel que ele tinha construído, através da qual,
com base nos registos dos últimos quinze anos, se podiam planear as
vendas por ponto de venda nos trimestres seguintes. Ainda hoje, esse
sistema de cálculo era usado na Empresa.
Entretanto, o mercado da distribuição de publicações estava a
mudar a uma velocidade vertiginosa. As novas televisões privadas,
criadas nos primeiros anos da década de noventa, vieram trazer uma nova
dinâmica ao mercado dos jornais e revistas. Á sua volta foram-se
organizando e crescendo grupos poderosos que incluíam, para alem do
negócio tradicional de televisão, rádios, editoras de jornais e
revistas, gráficas, distribuidoras de publicações e, mais tarde, TV por
cabo e empresas de Internet.
Nos primeiros dois anos, embora se sentisse a falta da
"presença" e da dinâmica do Sr. Artur, não houve grandes modificações,
a não ser o esvair contínuo de títulos importantes para as
distribuidoras dos grandes grupos de media. A morte do Sr. Artur, em
1997, e a saída de mais dois importantes editores para a concorrência,
no início de 1998, fizeram com que a Empresa se modificasse
completamente.
O Jaime fechou-se, mais ainda, no gabinete, evitando toda e
qualquer forma de reunião ou evento colectivo, incluindo aqueles onde
se encontravam os clientes mais importantes. Limitou os seus contactos
aos amigos pessoais, a maioria dos quais nada conheciam do negócio.
Deixou de haver comunicação (e, muito menos, discussão) sobre o que de
relevante se passava na Empresa. Eram dadas instruções detalhadas, de
forma desgarrada, muitas vezes, por interpostas pessoas e sem qualquer
apoio ou acompanhamento. As orientações variavam quase semanalmente e
eram, frequentemente, conflituantes entre si.
Pouco a pouco, Jaime foi centralizando em si todas as decisões
e tornou-se ainda mais "desconfiado" em relação ás pessoas, em
particular, em relação àquelas que tinham trabalhado com o Pai.
Refugiava-se em pequenos problemas administrativos e adiava todas as
decisões sobre problemas de fundo. "Era capaz de enviar notas aos
directores sobre falta de papel higiénico nas casas de banho, mas nunca
participava em reuniões sobre novos contratos com clientes ou
alterações na estrutura informática".
Começou a procurar culpados e a punir pessoas por tudo o que de
mal acontecia. Criou-se um ambiente de medo, que anulou completamente a
(já pouca) iniciativa individual. Este mau estar, não só aumentou o
"turnover" de empregados, como se transmitiu aos clientes, prejudicando
a imagem da Dispress, que tinha levado décadas a construir.
Muitos dos empregados que tinham erguido a Empresa com o Sr.
Artur andavam pela casa dos cinquenta anos, pelo que tinham
dificuldades em encontrar outras oportunidades profissionais. Mas, os
mais novos e com mais valor, foram abandonando a Dispress. Os que
ficavam, iam-se apoiando uns nos outros e aguentando o negócio de todas
as formas que conseguiam. Muitos editores, especialmente, os mais
antigos e não ligados a grupos de media, mantinham-se fiéis à Empresa,
devido ás relações pessoais que tinham com essas pessoas.
Apesar de todo o esforço feito por muitos empregados, o negócio
continuava a cair todos os anos. Não se via nenhum plano ou ideia sobre
a forma de alterar este cenário. Uma solução possível, (que tinha sido
recusada dois anos antes), era a Dispress juntar-se a um grupo de
media. Isso, contudo, significaria perder o poder absoluto, o que não
era aceitável para o Jaime.
Para ultrapassar as dificuldades financeiras que começaram,
entretanto, a surgir, foram "impostas" algumas decisões, como a
antecipação do pagamento pelas lojas e o atraso no prazo de pagamento
aos editores, o que gerou enormes protestos dos clientes e agravou
ainda mais o problema. "Enfim, erro, atrás de erro".
No ultimo ano e depois da visita de uma empresa de consultoria
de um amigo seu, Jaime passou a defender que a culpa da situação em que
a Empresa se encontrava era da equipa de direcção, (constituída, na
maioria, por pessoas que tinham trabalhado com o Sr. Artur). Acusou-os
de "serem um entrave à mudança" e afastou-os dos lugares em que
pudessem influenciar o negócio.
A decisão parece não ter tido qualquer efeito positivo. Não
foram implementadas, ou mesmo anunciadas, nenhumas medidas de fundo e
as poucas decisões tomadas ainda agravaram mais a situação da Empresa.
"A Dispress continua a esvair-se e já ninguém acredita que dure muito
tempo".
"Filha, Hoje não aguentei mais. Que pena tenho que filho de peixe não saiba nadar".