Contentamentos Descontentes
há 917 semanas
"É um não querer mais de bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter por quem nos mata lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo amor?"
Luís de Camões
Isabel ainda não caíra em si! Esperava tudo, menos aquela proposta.
Não tinha formação, nem experiência em Recursos Humanos. Os únicos
contactos que tivera com esta "função", foram na qualidade de dirigente
sindical e não tinham sido, em geral, muito pacíficos. Não tinha
experiência de gestão de Pessoas e sempre se achara mais técnica do que
gestora.
Apesar de tudo isto, Carlos Branco, o director de Recursos
Humanos da Celpor, tinha-a convidado, uns minutos antes, para trabalhar
com ele, ocupando a vaga de Chefe de Serviços Administrativos de
Recursos Humanos. Disse-lhe que há muito tempo que a observava e que
pensava que ela era a pessoa indicada para ocupar aquele lugar,
acrescentando:
- "O seu conhecimento do negócio e da Empresa é muito
importante para ajudar a DRH a aproximar-se das áreas funcionais. O seu
bom senso será fundamental para resolver muitos dos problemas sensíveis
que passam por aquele serviço. A sua experiência sindical, não só dará
uma imagem de abertura à Empresa, como lhe permitirá uma abordagem mais
equilibrada aos problemas".
E continuou:
- " A componente técnica da função não é a determinante, até
porque terá uma boa equipa a apoiá-la. Liderar é uma arte e não uma
ciência e você possui características inatas de liderança. Não se
preocupe! O desafio é grande, mas vai ver que não se arrepende".
Apesar de ter ficado muito lisonjeada e de ter respondido
afirmativamente, Isabel mantinha muitas dúvidas sobre a sensatez da sua
resposta. Sabia que por aquele Serviço passavam assuntos muito
sensíveis, que seriam agravados com o processo de privatização, que se
iria iniciar em breve. A imagem do Serviço na Empresa não era famosa.
Conhecia bem as pessoas que ali trabalhavam e sabia que a maioria eram
profissionais competentes e dedicados, mas tinha a impressão que a
organização e os métodos de trabalho não eram os melhores. Por ultimo,
não estava certa que a componente técnica fosse assim tão irrelevante.
As pessoas esperam que os chefes saibam mais do que eles sobre os
assuntos, para os poder apoiar.
"A gestão da equipa era o que mais a preocupava".
A Celpor era uma Empresa Publica constituída em 1975, a partir
de três empresas familiares, todas elas com várias dezenas de anos de
existência e situadas em zonas diferentes do País. Depois de cerca de
vinte anos como Empresa Pública, a Celpor era já "uma só empresa".
Tinha-se modernizado, tornado líder incontestada no mercado Português e
entrado em alguns mercados estrangeiros. Em simultâneo, adquiriu os
"defeitos tradicionais" das empresas públicas: Gestão muito
condicionada politicamente; Número de empregados muito superior às
empresas privadas do sector; Estruturas envelhecidas e com baixo nível
de habilitações; Salários baixos (embora com um bom nível de benefícios
sociais); Absentismo elevado e muita conflitualidade laboral.
Pouco a pouco, ao longo dos vinte anos de existência, a Empresa
tinha sedimentado uma cultura que poderia ser definida como tipicamente
"Portuguesa". Apesar da conflitualidade laboral induzida por
organizações sindicais poderosas, o ambiente era calmo, agradável e
havia um esforço por resolver todos os problemas de forma consensual.
As pessoas eram tratadas de forma afectuosa e existia em todos os
assuntos um grande respeito pelos sentimentos das pessoas envolvidas.
Era muito raro a Empresa tomar a iniciativa de despedir alguém, havendo
sempre mais uma oportunidade.
Os objectivos globais eram perfeitamente atingíveis e os meios
para os alcançar estavam disponíveis. Os salários base eram razoáveis
para o sector, embora estando espartilhados numa grelha existente há
muitos anos e que criava condições de promoção quase automáticas. O
grande investimento da Empresa ao longo dos anos tinha sido nas
regalias sociais. Eram iguais para todos e claramente superiores ao
habitual no mercado. Os prémios de desempenho eram de valor pouco
significativo e, essencialmente, ligados a objectivos colectivos. Há
muito que todos os assumiam como parte da remuneração anual.
Normas e procedimentos eram quase inexistentes, havendo uma
tradição de relação informal e de resolver os problemas de forma
amigável. Em contrapartida, havia muito formalismo na modo de vestir
(fato e gravata), na distribuição e decoração dos escritórios (um andar
para a Administração e Direcção) e na forma das pessoas comunicarem
(grande importância dos títulos). Vestia-se e apertava-se o casaco para
ir ao andar da Administração. A lealdade à Empresa era um dos valores
mais fortes, existindo várias formas de celebração colectiva
(comemoração dos aniversários, dia da Empresa, festa de Natal, etc) que
o reforçavam.
Enfim, um ambiente "tradicional e confortável".
A Empresa estava desde há vários anos a preparar-se para ser
privatizada. Tudo levava a crer, que o processo se iria iniciar em
breve e que passaria pela entrada dum "player" internacional, aliado a
um grande grupo nacional, que já detinha unidades produtivas no sector.
Esperava-se um processo doloroso, com uma redução significativa do
número de empregados (provavelmente, a médio prazo, a concentração em
apenas duas unidades produtivas) e uma alteração radical na cultura da
empresa. As perspectivas não eram animadoras, bastando, para tal, ver o
que se passava nas outras empresas desse grupo privado nacional.
Antes de iniciar as funções, Isabel pediu a Carlos Branco
alguns dados sobre o Serviço para poder conhecer melhor o grupo de
trabalho em que se iria integrar.
Trabalhou e sintetizou os elementos fornecidos nas três figuras seguintes:
Fig.1 - Organograma da Direcção de Recursos Humanos
Fig. 2 - Quadro de Ratios de Recursos Humanos
Fig. 3 - Quadro resumo de absentismo
Numa primeira e breve análise dos quadros, Isabel notou que a
taxa de absentismo do seu grupo de trabalho era muito superior à da
Empresa e da própria Direcção de Recursos Humanos, com especial
incidência na unidade 1, onde atingia os 16.2%, dos quais muito perto
de 50% se deviam a baixas de duração inferior a um mês. Teria de
investigar as razões, porque estes dados poderiam ser indiciadores de
alguns problemas.
O "turnover" do Serviço, apesar de alto (16.6%) não lhe
parecera preocupante, porque, na realidade, tinham saído apenas dois
colaboradores voluntariamente. Mudou, contudo, de opinião, quando
percebeu que, nos últimos três anos, dois ou três empregados por ano
abandonavam a empresa por iniciativa própria e que eram, quase sempre,
pessoas licenciadas, com menos de dois anos de casa e oriundas do
Planeamento e da Unidade 1. "Tinha de perceber porquê".
"Olhou" também para os números de horas de trabalho suplementar
realizadas no ano anterior e concluiu que eram relativamente baixos,
com excepção da Unidade 1, na qual tinham sido feitas seiscentas e
trinta e três horas extraordinárias no ano anterior. Nos outros
subgrupos, notava-se que apenas esporadicamente se recorria ao uso de
trabalho suplementar.
Um elemento muito interessante que lhe foi fornecido pelo
Carlos Branco foi o resultado dum inquérito de clima organizacional,
realizado cerca de seis meses antes. Os resultados eram reveladores: O
índice de satisfação dos empregados do Serviço estava em linha com o da
restante Empresa e era bastante razoável, sendo 3.6 no global e
variando entre os 3.9 na Unidade 3 e os 2.8 na Unidade 1. As pessoas
gostavam do trabalho que executavam (4.3), tinham bastante orgulho em
trabalhar na Celpor (4.1) e em regra, consideravam que as chefias os
tratavam com respeito (3.4). Por outro lado, avaliavam muito
negativamente a comunicação interna (2.5) e a colaboração entre
sectores (2.8).
Quando fez uma análise mais profunda, verificou que os valores
da Unidade 1 eram, em regra, inferiores aos das outras unidades, em
especial nos pontos que focavam as relações com as chefia e a
comunicação.
A sua primeira acção como Chefe dos Serviços Administrativos
de Recursos Humanos, foi ter uma conversa individual com todos os
colaboradores do serviço e uma reunião mais completa com os Chefes dos
quatro grupos de trabalho. Estas conversas vieram confirmar algumas das
conclusões que já extraíra da análise dos dados e trazer-lhe mais
alguns motivos de preocupação.
Embora já tivessem tido alguns contactos no passado, Isabel
teve uma longa e agradável conversa com a Teresa Marques, Responsável
pelo "Gabinete de Planeamento & Estudos" há cerca de sete anos.
Teresa era licenciada em Gestão, com uma pós-graduação em Gestão de
Recursos Humanos, e, segundo ela, tinha-se transformado numa técnica
desta especialidade. Considerava que o seu maior defeito era "ser
perfeccionista" em tudo o que fazia. Dizia ter um "bom grupo de
trabalho", alguns dos quais ainda bastante novos, mas tecnicamente
muito competentes. Referia muitas vezes acções do Rodrigo Melo, que
"considerava o seu braço direito". Afirmava que gostava que "cada um
assumisse as suas tarefas com autonomia", gostando muito de delegar.
Infelizmente, "algumas pessoas não estavam preparadas para trabalhar
com autonomia" e, no passado, vários dos seus colaboradores tinham
abandonado a Empresa.
Da conversa com os técnicos do "Planeamento", percebeu algumas
cambiantes da imagem passada pela Teresa. Todas as pessoas a
consideravam uma excelente técnica e uma pessoa de trato afável e
sempre disposta a colaborar. Lamentavam que ela "não saísse do
gabinete" e que se limitasse a distribuir tarefas, muitas das vezes,
sem qualquer preparação e acompanhamento. Este desacompanhamento criava
um sentimento de insegurança, para além duma falta de orientação e de
disciplina no tratamento dos assuntos. A "confusão" que se gerava já
tinha levado à saída de algumas pessoas".
Concluiu que, na prática, a pouca coordenação que existia era
feita pelo Rodrigo Melo, que acabava por ser o líder do grupo.
Possuidor de uma personalidade, bastante forte e contestatária, Rodrigo
acabava por assumir algumas das áreas "abandonadas" pela Teresa. No
entanto, muitas vezes, esta liderança não "institucionalizada" do
Rodrigo era vista, pelos outros colegas, como intromissão e, pelos
outros sectores, como desautorização da Teresa.
O António Janicas, responsável pela Unidade 2 era seu amigo de
há muito. Não só tinha sido ele que tinha tratado da sua admissão oito
anos antes, como se tinham encontrado muitas vezes, no âmbito das
actividades dum grupo Católico, a que ambos pertenciam. Achava-o uma
excelente pessoa. O António tinha trabalhado, desde sempre, para a
família que era a antiga proprietária duma das três Unidades
produtivas, que deram origem à Celpor. Era um homem muito conhecido e
querido em toda a Empresa, nomeadamente, ao nível da Direcção. Assuntos
de maior confidencialidade ou melindre eram-lhe confiados a ele,
pessoalmente. Todos reconheciam a sua excelente capacidade de
relacionamento a todos os níveis. Tinha tido um papel "apaziguador", em
vários momentos de grande conflitualidade na Empresa. A sua equipa era
constituída por pessoas com bastantes anos de casa e com pouca
formação. Isto não ajudava a compensar as falhas de António em termos
de capacidade de organização e de conhecimentos técnicos. Era, sem
dúvida, a Secção com pior "performance" das três.
Os colaboradores da unidade 2 gostavam muito de trabalhar com o
António Janicas. Diziam, com orgulho, que eram uma verdadeira equipa.
Tudo era discutido e decidido em conjunto. Viam-no como "um amigo que
está sempre disposto a defendê-los e a apoiá-los em tudo". Sentiu nas
conversas com eles, que eram pessoas "satisfeitas" e não demonstravam
interesse em qualquer projecto de mudança. Só o criticavam o "chefe"
devido à sua incapacidade de dizer não aos outros sectores. Uma das
suas frases preferidas era "albarda-se o burro à vontade do dono". Na
Celpor havia constantes mudanças de "dono", o que fazia com que
andassem sempre a mudar tudo.
Isabel ficou muito bem impressionada com o Valério Gamito,
responsável pela Unidade 3. De uma forma sóbria e profissional, Valério
demonstrou-lhe que tinha um assinalável "track record" de projectos
inovadores no passado e também que sabia bem qual o papel que ele e a
sua equipa de trabalho deviam ter no futuro. A gestão da mudança
organizacional era uma das suas grandes preocupações. Entendia que o
essencial do seu papel, enquanto gestor de Recursos Humanos, era
contribuir para o negócio através das pessoas e vice-versa. Pareceu-lhe
uma pessoa com uma formação técnica muito sólida. Tinha uma grande
preocupação em fazer crescer os membros da equipa, trabalhando muito em
equipa com eles. Gostava de os fazer participar "em projectos de
Recursos Humanos e não só". Demonstrou um bom conhecimento do negócio e
uma grande orientação para os "seus clientes". "Todos os dias dou um
"passeio" pela fábrica. É a melhor forma de sentir o pulsar da
organização para o poder levar para a mesa da direcção".
No fim da conversa, Isabel sentiu que tinha aprendido bastante
e que "os Recursos Humanos até poderiam ser uma área interessante".
Os membros da equipa confirmaram esta sua ideia. Todos eles
respeitavam o Valério e reconheciam que trabalhar com ele lhes trazia
valor acrescentado. Para além do conhecimento técnico, realçavam a
forma como lhes "vendia" novos projectos, a sua capacidade de os ouvir,
a abertura a novas iniciativas e a confiança que depositava neles. Para
o Valério "um erro era sempre uma oportunidade de aprendizagem para a
equipa". Criticavam-no um pouco pela falta de agressividade na defesa
dos interesses da equipa, nomeadamente, em termos de aumentos
salariais. "Nesta empresa quem mais grita é quem mais leva e o Valério,
sabe afirmar a sua posição, mas não gosta de gritar".
Maria do Carmo Tavares, chefe da Unidade 1, mostrou ser uma
pessoa directa, de convicções fortes e muito organizada. Tinha crescido
na Empresa onde estava há mais de dezoito anos. Acreditava que as
razões do "seu sucesso na Celpor" se deviam à sua exigência e rigor
consigo e com os outros e à capacidade de atingir resultados. Tinha
muito orgulho na eficácia da sua secção. "Com quatro pessoas, fazemos
mais trabalho do que nas outras áreas com o dobro". Gostava de referir
o seu grupo como uma "máquina onde cada peça sabe, até ao detalhe, o
que fazer e como o fazer". Mostrou, várias vezes, com vaidade os
"resultados do seu trabalho". "Foi a primeira unidade a ter o novo
sistema informático de processamento de vencimentos a funcionar.
Trabalhei muitas noites até de madrugada, mas consegui". Achava que os
outros sectores não compreendiam as "obrigações legais" que os Recursos
Humanos têm de fazer cumprir e que não valorizavam devidamente o seu
trabalho. Considerava-se um pouco incompreendida na Celpor", devido à
"cultura de balda que existia na Empresa".
Isabel conseguiu perceber nas "entrelinhas" das conversas com
os colaboradores desta unidade, algumas diferenças de "visão". A Carmo
era vista por todos como muito competente do ponto de vista técnico e
extremamente dedicada à Empresa. "É sempre a primeira a chegar e a
última a sair". Definia de forma muito pormenorizada e equitativa o que
cada um tem para fazer e como o deve fazer. Era bastante exigente
quanto à qualidade do trabalho e muito avessa a qualquer espécie de
inovação ou iniciativa que pudesse colocar em risco essa qualidade. "A
roda já foi inventada há muito tempo", era uma das suas frases típicas.
Um dos colaboradores mais novos criticou a forma, por vezes,
"desabrida" da Carmo "avaliar e punir qualquer engano" e,
principalmente, o nunca ter uma palavra de reconhecimento por qualquer
esforço ou resultado. "Vocês já sabem que eu tenho pouco jeito para
essas coisas", costumava dizer.
Duas semanas depois de ter começado, Isabel teve a primeira reunião com o seu novo chefe.
Com um sorriso na boca, Carlos perguntou-lhe:
- "Então Isabel, já se arrependeu?