vivências

Grupos e Equipas

há 963 semanas
“Deus quer, o homem sonha, a obra nasce,
Deus quiz que a terra fosse toda uma,
que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendado a espuma”.
Fernando Pessoa – O Infante




Camilo acordou às cinco da manhã e já não conseguiu dormir mais. Acontecia-lhe sempre o mesmo quando estava preocupado. E ele estava muito preocupado com o que se estava a passar na sua Empresa. Tinha esperança que a sugestão de contratar um especialista de trabalho em equipa para o ajudar, desse resultado. Tinha já uma reunião marcada para as nove horas com uma especialista sugerida pelo Director de Recursos Humanos. “Veremos”!

Joana ficou muito entusiasmada com a conversa que teve com Camilo Queiroz, CEO da Analitical Software. Já tinha lido alguns artigos sobre ele e sobre a sua “Analitical” em revistas de negócios e já tinham estado juntos em alguns eventos, mas nunca tinham tido a oportunidade de conversar.

Joana Ferreira era considerada uma das maiores especialistas de comportamento organizacional em Portugal. Trabalhou alguns anos em gestão de recursos humanos, logo a seguir à conclusão da sua licenciatura em Sociologia e antes de fazer a opção pela carreira académica. Fez um mestrado numa reputada universidade Holandesa, (sendo a sua tese sobre “trabalho em equipa”) e, há mais de dez anos, que se dedicava ao ensino universitário e à investigação. A Universidade, contudo, não conseguiu fazer esquecer o gosto pelas organizações e há cerca de três anos tinha criado uma Empresa de consultoria, orientada especificamente para a problemática do trabalho em equipa.

Camilo foi um dos fundadores da Analitical Software, Empresa especializada em desenvolvimento de Software para “call centers”. A Analitical tinha sido uma das primeiras empresas do mundo a perceber a importância da relação com o cliente e cerca de oito anos antes (1990), iniciou o desenvolvimento de software para agilizar e potenciar esta relação. A Empresa cresceu muito, em especial, após 1995, sendo actualmente “um key player” a nível mundial na área de negócio de software para “costumer interactions”.

Foi recebida por Camilo num gabinete bonito e espaçoso, decorado duma forma um pouco estranha: Uma mistura de peças ligadas a tecnologia com outras próprias de culturas orientais. Tinha sido muito simpático e tratou-a imediatamente por tu. Antes, Joana tinha aguardado uns minutos junto à recepcionista. Viu passar muita gente nova, conversando animadamente. Reparou que nenhum usava gravata e que todos se tratavam com muita informalidade.

Camilo explicou-lhe em traços sintéticos e muito esclarecedores, as principais características do negócio em que a Empresa se movimentava. Joana compreendeu que a Analitical era “uma fábrica de software” (produzia um produto) e não uma “oficina” que prestava um serviço de adaptação (integração) dum produto a um cliente específico. Entendeu que o produto tinha um “core”, que era a gestão da interacção telefónica da empresa com o cliente e um conjunto de “features” funcionais, como sejam, a gravação de chamadas, a gestão de chamadas em espera, guião para utilizadores, a informação sobre o cliente, etc. Interiorizou que se tratava de um produto único e que tinha que ser extremamente flexível para se poder “ligar” a centrais telefónicas, que utilizavam softwares muito diversificados. Concluiu, por fim, que se tratava de um produto tecnicamente muito complexo e em constante inovação, que combatia num mercado mundial, altamente competitivo e em grande crescimento. Parafraseando Camilo “neste mercado não só temos que ser melhores que os outros, mas também temos que o ser mais depressa”. Inovação e rapidez eram as palavras-chave daquela indústria.

O uso de Internet (principalmente quando integrada em telemóveis), iria, segundo Camilo, revolucionar o mercado da gestão do relacionamento com os clientes (GRC), mudando o conceito de “call center” para “contact center”. Percebendo isto e sabendo que a Analitical não tinha competências nesta área, tinham adquirido, há cerca de dois meses, uma pequena empresa chamada Netsystems, com cerca de quarenta engenheiros informáticos especializados no desenvolvimento de software em ambiente Web.

A integração da Netsystems estava a ser feita com alguma tensão. As culturas eram muito diferentes e existia muita competição entre os engenheiros de desenvolvimento. “A maioria deles foram colegas na universidade e até são amigos, mas parece que falam linguagens diferentes”. Os “históricos”, especialistas em voz, defendiam que tinham sido eles que construíram o sucesso da empresa e que a voz ainda tinha muito para dar. Os novos, especialistas em Internet, pensavam que sem eles a empresa não tinha futuro e que o “know-how” que possuíam era fundamental para a estratégia futura da empresa.

“ O problema é que ambos têm razão”.

Há cerca um mês, Camilo tinha decidido lançar um projecto, que baptizou de “opensemble”, com o objectivo de desenhar e definir a estratégia de desenvolvimento do novo produto da Analitical. Para o levar a bom Porto, constituiu um grupo de trabalho, liderado por si, no qual incluiu todos os responsáveis das as áreas que tinham algo a dizer sobre o tema. Na primeira reunião, explicou, em termos gerais, o objectivo daquele projecto, realçou a sua importância estratégica para o futuro da Empresa e pediu a colaboração de todos. A única reacção veio do Maurício Portas, que disse que, por uma “questão de honestidade profissional”, tinha de referir que não concordava com a maneira como aquele assunto estava a ser conduzido e acrescentou: “A Analitical tem um passado de sucesso e nunca foi preciso um grupo para definir a arquitectura do produto. Está provado que as grandes inovações saíram da cabeça duma pessoa e não do trabalho de um grupo! Camilo tinha detectado sinais leves de concordância na face de alguns dos outros participantes na reunião.

Na segunda reunião, Camilo não esteve presente, por ter uma reunião com novos accionistas, mas soube que David Sá Carneiro, Director de Marketing, fez uma apresentação sobre as perspectivas de evolução do mercado, baseando-se em estudos da Gardner e da Ovum. Tinha-se iniciado uma discussão à volta do conceito de “web collaboration”, quando Maurício abandonou a sala, dizendo que tinha de ir para outra reunião, onde se “estava a tratar duma encomenda dum cliente, que tinha de ser entregue no prazo de uma semana, sob pena de não se pagar os subsídios de Natal, no fim do próximo mês”. No espaço de poucos minutos, a reunião acabou.

A terceira reunião tinha sido uma semana antes. Camilo participou nela e Maurício chegou com cerca de meia hora de atraso. Alfredo Palma, Responsável pela Qualidade, trouxe uma apresentação sobre questões de qualidade em software “tradicional” e em ambiente web. Quando se estava a iniciar a fase de perguntas sobre alguns aspectos mais polémicos da apresentação, o telefone de Maurício tocou e ele atendeu, interrompendo a reunião durante cerca de quinze minutos. A interrupção matou a reunião. Ninguém parecia ter ânimo para voltar a discutir fosse o que fosse. Camilo apercebeu-se, naquele momento, que tinha em mãos um grave problema e que não sabia como lidar com ele.

- Joana, o sucesso futuro da Analitical Software passa por conseguir pôr esta gente a trabalhar em conjunto! Aceitas o desafio de nos ajudar neste projecto?

Joana não hesitou um segundo. Respondeu afirmativamente e, na prática, começou logo a “consultar”. Explicou ao Camilo que trabalho em equipa era mais que juntar meia dúzia de pessoas numa sala e dar-lhes uma tarefa para cumprir. Acrescentou que trabalhar em equipa “a sério” passava por uma mudança cultural que, como tal, obrigaria a um conjunto de mudanças integradas e sintonizadas que reforçassem a nova forma de trabalhar. Deu-lhe como exemplo, a necessidade do sistema de prémios estar sintonizado com a nova filosofia. Defendeu que era fundamental a formação das pessoas em algumas técnicas de trabalho em conjunto e a criação de alguns novos papeis na organização. Por último, realçou que o papel do CEO e dos restantes membros da direcção seria fundamental em todo este processo. “Ou acreditam verdadeiramente nesta nova forma de trabalhar e a incentivam, ou então mais vale nem começar”. Maurício respondeu-lhe que podia contar com o seu empenho.

Em seguida falou-lhe do projecto “Opensemble”. O objectivo final desta equipa seria definir a estratégia do novo produto da Empresa, em termos de funcionalidades e de softwares a utilizar. O grupo era composto por David Sá Carneiro, Marketing, Maurício Portas, R&D da Voz, Cristina Barroso, R&D da Net, Manuel Sampaio, Vendas, Sérgio Santana, Serviços Profissionais e Alfredo Leite, Qualidade. Falou-lhe de seguida de cada um deles.

David Sá Carneiro, Director de Marketing, tinha sido, como quase todos na Analitical, um dos melhores alunos do seu curso engenharia informática. Logo após o fim da licenciatura, tinha ido trabalhar para a Califórnia, onde esteve perto de nove anos. A sua formação (em especial um MBA) e a experiência Americana tinham trazido à Analitical uma formalização de processos, que se estava a mostrar decisiva, em face do crescimento da Empresa. Era considerado profundamente conhecedor do negócio, muito orientado para as tarefas e para objectivos muito pragmáticos. Fixava objectivos muito elevados e traçava planos detalhados para os atingir. Como líder de pessoas, costumava definir-se como um “Apóstolo” dos “Seven habits”.

Maurício Portas, Director de R&D Voz era uma das mentes mais brilhantes da Analitical. Camilo considerava-o como um dos melhores arquitectos de software do mundo. Toda a estrutura do software actual dos produtos da Analitical tinha saído da sua cabeça. Era uma pessoa intelectualmente honesta, muito exigente em relação a si e aos outros e conhecia tecnicamente os produtos como ninguém. Em grupo assumia sempre posições divergentes, de desafio e muitas vezes fazia com que fossem assumidos riscos elevados. Era conhecido “pelo seu mau feitio”.

Cristina Barroso, Directora de R&D Net tinha sido também uma das fundadoras da Analitical, mas a sua necessidade de novos horizontes levou-a, ao fim de poucos anos, a abraçar outros projectos, tendo sido uma das fundadoras da Netsystems. Todos a consideravam extremamente criativa. Não era forte em trabalhos de rotina e em detalhes, mas “tinha rasgos criatividade” que resolviam, de forma muitas vezes inesperada, problemas muito difíceis. Cristina era uma entusiasta do trabalho em equipa. Acreditava que uma equipa, composta de especialistas com competências complementares e com uma definição clara dos objectivos, era a melhor forma de ter êxito. Era uma pessoa muito aberta, cooperante e sempre disposta a colaborar para o bem da equipa.

Manuel Sampaio, Director de Vendas, tinha trabalhado muitos anos numa grande multinacional Europeia de telecomunicações. Era, de todo o grupo, o mais sénior e aquele que melhor conhecia os clientes e que tinha melhor visão dos mercados nacional e internacional. Era um homem muito “terra a terra”. “Mais do que grandes soluções para dentro de cinco anos, preocupa-me o que fazer para resolver os problemas dos clientes dentro de três meses”. Gostava de objectivos elevados e “millestones” bem definidas. Camilo reparara que o Manuel era o único que criticava abertamente o Maurício.

Sérgio Nunes, Director de Serviços Profissionais, era o mais extrovertido de todos. Como ele costumava dizer com o seu habitual bom humor: “Depois de conseguir integrar o produto da Analitical na Caixa Geral de Depósitos, nenhum problema do mundo me mete medo”. Era a pessoa que mais contribuía para criar um ambiente informal e agradável nas reuniões. O seu humor parecia, por vezes, afectar a produtividade das reuniões, mas tinha sido importante para acalmar alguns conflitos mais acesos. Camilo sabia que ele tinha falado com Maurício depois das reuniões para tentar trazê-lo para o grupo. Gostava que todos participassem e acreditava que o grupo só poderia ter sucesso através de soluções consensuais.

Alfredo Palma, Director de Qualidade, definia-se a si mesmo como um técnico e tinha muita dificuldade em perceber a sua participação naquele projecto. “Eu sou pago para detectar bugs e sugerir a sua resolução”. Estava sempre preocupado com o trabalho que tinha para fazer no seu posto de trabalho e achava a sua presença no grupo uma perda de tempo. Intervinha apenas quando era solicitado ou quando o tema tinha a ver com qualidade. Era um homem meticuloso em tudo que fazia e considerava que “o segredo está nos detalhes”.
Camilo sabia que todos valorizavam o seu conhecimento dos produtos e que o respeitavam muito. “É dos que fala pouco, mas, quando o faz, é ouvido com atenção”, dissera Camilo, sobre ao Alfredo.

Joana fez algumas sugestões a Camilo. A primeira foi deixar de ser o líder e passar essa tarefa a um dos membros do grupo. Deveria reunir periodicamente com o novo líder e acompanhar o projecto, ficando à sua disposição para ajudar resolver todos os problemas que lhe fossem transmitidos. Propôs-lhe, também, que, em conjunto com o novo líder, definissem de forma mais precisa o objectivo e duração global do projecto e os objectivos parcelares com as respectivas durações e formas de avaliação (KPIs). Esses objectivos deveriam ser comunicados por ele na próxima reunião.

Camilo escolheu David Sá Carneiro para líder do grupo, o que lhe pareceu uma decisão muito acertada. Joana passou um dia a trabalhar com David na preparação da primeira reunião. Falaram abertamente do valor acrescentado e dos problemas que cada participante podia trazer ao grupo. Discutiram qual deveria ser o papel do líder. Elencaram um conjunto de problemas que poderiam surgir e qual a melhor forma de os resolver. Fizeram um “draft” de “regras base” da reunião que deveriam ser respeitadas por todos, entre as quais estavam as de chegar a horas e sair só no fim das reuniões, desligar os telefones, participação activa de todos em qualquer assunto, etc. Definiram alguns papéis formais para membros da equipa, como os da pessoa que faz a acta (alcunhado de escriba), a pessoa que controla o tempo, a pessoa que faz a agenda, etc.
No fim do dia, o David confessou-lhe que tinha recebido a nomeação de líder do projecto opensemble com muita preocupação, mas agora já se sentia muito mais seguro”

A primeira reunião liderada por David e com a presença de Camilo e Joana correu sem “grandes ondas”. Carlos comunicou as alterações no funcionamento do projecto e fez uma apresentação sobre a “missão” da equipa, reforçando a importância do seu sucesso para o futuro da Analitical. David detalhou os objectivos definidos, falando das várias fases do projecto e dos “millestones”e propôs as “ground rules” de funcionamento do grupo.

Sérgio brincou dizendo que “aquilo até parecia uma reunião duma Empresa a sério”. Cristina mostrou o seu entusiasmo pelas alterações introduzidas, embora referindo que alguns aspectos da missão deveriam ser clarificados, para que não ficassem dúvidas sobre a direcção a seguir. Manuel acrescentou que estava a gostar da transformação, mas que seria importante “meter a mão na massa e começar a trabalhar”. Maurício disse, por fim, que dava o benefício da dúvida, mas que havia aspectos na forma como os objectivos parcelares estavam fixados, que iriam gerar problemas.

As regras de funcionamento foram aceites por todos. A missão foi retocada com algumas proposta da Cristina, que melhoraram a ligação daquele projecto com vários outros que estavam a ser desenvolvidos na Empresa. Foram acrescentadas, por proposta do Maurício, três novas fases ao projecto, devidamente temporizadas e com factores de avaliação. No fim da reunião, marcaram a data da reunião seguinte e decidiram trabalhar aos pares no tratamento de três temas base.

O primeiro ponto da agenda da segunda reunião, aprovação da acta da reunião anterior, correu de forma muito organizada. A restante reunião foi uma confusão pegada. A informação disponibilizada pelas três apresentações era avassaladora, complexa e com muitos pontos de conflito, o que gerou vários focos de discussão e um sentimento de inoperância. Manuel interveio para dizer que “assim não vamos a lado nenhum” e propôs que se listassem os problemas e se criassem métodos de os tratar e discutir um a um. O resto da reunião foi dedicada a acordar esta lista.

Nas semanas seguintes cada “dupla” investigou um dos temas e apresentou os resultados. Os debates iam sendo cada vez mais focalizados no tema em discussão e as conclusões iam sendo incluídos nas actas. Não havia ainda clareza sobre o projecto global, mas por volta da quinta reunião alguns aspectos técnicos começavam a tomar forma.

Na sexta reunião surgiu uma enorme discussão sobre se “ a empresa deveria assumir uma linha de rotura com a arquitectura do produto actual ou se deveria manter uma linha de continuidade, acrescentando-lhe novas funcionalidades”. Joana tinha muita dificuldade em entender a linguagem que estava a ser usada, mas compreendeu que a discussão se dava entre Maurício e Manuel, defensores da continuidade e Cristina e David, defensores da rotura. Os argumentos técnicos esgrimidos pareciam ser aceites pelos outros, havendo apenas diferenças de avaliação quanto ao tempo de implementação e impacto no negócio.

Alfredo interveio uma única vez, referindo que, na prática, nem uma nem outra solução seriam possíveis. A rotura não seria aconselhável devido à dimensão e importância da base instalada de clientes. Era impensável descontinuar produtos e, mais ainda, prejudicar o negócio dos “upgrades”. A continuidade não seria viável, porque o produto já estava nos limites da sua capacidades e as encomendas estavam a aumentar de dimensão. Esta intervenção, aceite por todos, pareceu racionalizar a discussão e trazê-la para um novo patamar. Todo o debate se orientou então para soluções de futuro.


Cerca das dezanove e trinta, David propôs que acabassem a reunião e Sérgio sugeriu e que fossem beber um copo. Toda a equipa desceu e encontraram-se num pequeno bar que ficava nas imediações do escritório, onde estiveram a discutir animadamente até de madrugada.

Nessa noite Camilo dormiu a noite toda. Sabia que tinha uma equipa que estava a colocar a Analitical Software no bom caminho.














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